Este é um espaço de divulgação, discussão e reflexão acerca dos mais variados e distintos textos, verbais ou não. Afinal, a literatura e a língua estão expressas sob diversas formas, que nos conduzem ao conhecimento, inclusive de nós mesmos. Bem vindo!

domingo, 27 de março de 2011

Você tem medo de dizer eu te amo?

Este vídeo me foi indicado pela querida Josiele. Gostei tanto que vou postá-lo aqui no blog e dividí-lo com vocês! 
A mensagem é sobre esta palavrinha mágica capaz de transformar  vidas, nos fazendo sentir melhores e amados a cada dia. O amor pode estar escondido aonde menos se espera. E para todos que tem esta oportunidade magnífica, digo: Apenas ame!  E percam o medo.
 

Caso de Canário

Esta crônica do Drummond é interessante, pois mostra o sofrimento de uma família que não quer ver o canário sofrer, mas ao mesmo tempo, não ousa praticar o ato infame de sacrificá-lo, por terem todos se apegado ao bichinho. A linguagem é bem próxima da fala e da oralidade, acredito que ocorre por conta de ser um fato corriqueiro, característica essencial de uma boa crônica. O título desta é o mesmo da postagem.
 
Casara-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
- Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de socrificar o pobrizinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
- Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
- Porque não tem cura, o médico disse. Pensa que não tentamos tudo? É pra ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
- Vai , meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu pra cantar.
- Primeiro me tragam um vidro com eter, e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrficador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar pra casa nem pra dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
- Ui!
Não é que o canário tinha ressucitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
- Ele estava precisando mesmo era de éter - concluiu o estrangulador, que se sentiu ressucitar, por sua vez.

Carlos Drummond de Andrade
 

Intertextos

Há um tempo, postei uma crônica "Para Maria da Graça", dedicada a todos aqueles que desta gostassem. Hoje, mostrarei um vídeo com a canção "Somos quem podemos ser", do grupo Engenheiros do Havaí, que parece ter sido composta sob a influência desta crônica de Paulo Mendes Campos. 
Não posso dizer que assim ocorreu, mas o fato é que a coincidência de estilo, temática e linguagem são muito semelhantes entre a crônica e a letra da canção. Inclusive, para os amantes e professores de literatura, fica a dica de se trabalhar o intertexto entre as duas composições.

 

Humor


Partido apresenta discurso político de duplo sentido.

Nosso partido cumpre o que promete.
Só os néscios podem crer que
Não lutaremos contra a corrupção.
Porque, se há algo certo para nós, é que
A honestidade e a transparência são fundamentais
Para alcançar nossos ideais
Mostraremos que é grande estupidez crer que
As máfias continuarão no governo, como sempre.
Asseguramos sem dúvida que
A justiça social será o alvo de nossa ação.
Apesar disso, há idiotas que imaginam que
Se possa governar com as manchas da velha política.
Quando assumirmos o poder, faremos tudo para que
se termine com os marajás e as negociatas.
Não permitiremos de nenhum modo que
Nossas crianças morram de fome.
Cumpriremos nossos propósitos mesmo que
Os recursos econômicos do país se esgotem.
Exerceremos o poder até que
Compreendam que
Somos a nova política.

(Agora, leia o mesmo discurso linha por linha, de baixo para cima!)

Não se espante!  A palavra discurso tem, por convenção, o intuito de dizer o que foi dito sem ter sido falado, cerceado por uma intencionalidade, marcada  pelo momento histórico, social e econômico em que é proferida. 
Discurso é o contrário do que foi dito, aquilo que fica no ar, por isso o temos, enfaticamente, na política, que alguns preferem nomear politicalha. 
 

quinta-feira, 24 de março de 2011

Qual sabor?

Eu me considero espírita, apesar de simpatizar com todas as religiões, pois tenho paixão pelas canções evangélicas, que estão em alta no mercado, e também gosto muito do padre Fábio de Melo, que é católico. A canção que escolhi postar tem um significado especial para mim porque a conheci por meio de um depoimento de um querido amigo, Weliton.  
Quando estou meio triste, ouço-a. Sabor de Mel, da Damares. E para aqueles que acreditam que isso não tem nada a ver com literatura, digo que estas são também letras essenciais porque nos falam de espiritualidade, muito necessária neste mundo tão complexo e egocêntrico.

 SABOR DE MEL
 
O agir de Deus é lindo
Na vida de quem é fiel
No começo tem provas amargas
Mas no fim tem o sabor do mel
Eu nunca vi um escolhido sem resposta
Porque em tudo Deus lhe mostra uma solução
Até nas cinzas ele clama e Deus atende
Lhe protege, lhe defende
Com as suas fortes mãos
Você é um escolhido
E a tua história não acaba aqui
Você pode estar chorando agora
Mas amanhã você irá sorrir

Deus vai te levantar das cinzas e do pó
Deus vai cumprir tudo que tem te prometido
Você vai ver a mão de Deus te exaltar
Quem te vê há de falar
Ele é mesmo escolhido
Vão dizer que você nasceu pra vencer
Que já sabiam porque você tinha mesmo cara de vencedor
E que se Deus quer agir ninguém pode impedir
Então você verá cumprir cada palavra que o Senhor falou

Quem te viu passar na prova e não te ajudou
Quando ver você na benção vão se arrepender
Vai estar entre a platéia e você no palco
Vai olhar e ver Jesus brilhando em você
Quem sabe no teu pensamento você vai dizer
Meu Deus como vale a pena a gente ser fiel
Na verdade a minha prova tinha um gosto amargo
Mas minha vitória hoje tem sabor de mel

Tem sabor de mel, tem sabor de mel
A minha vitória hoje tem sabor de mel
Tem sabor de mel, tem sabor de mel
A minha vitória hoje tem sabor de mel

Deus vai te levantar das cinzas e do pó
Deus vai cumprir tudo que tem te prometido
Você vai ver a mão de Deus te exaltar
Quem te vê há de falar
Ele é mesmo escolhido
Vão dizer que você nasceu pra vencer
Que já sabiam porque você tinha mesmo cara de vencedor
E que se Deus quer agir ninguém pode impedir
Então você verá cumprir cada palavra que o Senhor falou

Quem te viu passar na prova e não te ajudou
Quando ver você na benção vão se arrepender
Vai estar entre a platéia e você no palco
Vai olhar e ver Jesus brilhando em você
Quem sabe no teu pensamento você vai dizer
Meu Deus como vale a pena a gente ser fiel
Na verdade a minha prova tinha um gosto amargo
Mas minha vitória hoje tem sabor de mel

Tem sabor de mel, tem sabor de mel
A minha vitória hoje tem sabor de mel
Tem sabor de mel, tem sabor de mel
A minha vitória hoje tem sabor de mel ( 2x )

Minha vitória hoje tem sabor de mel ( 2x )

Sabor de mel...

terça-feira, 22 de março de 2011

Amor segundo Shakespeare

 
Soneto CXVI

De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

William Shakespeare

Saudade...

MEUS OITO ANOS


Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar - é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor! 

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!


Casimiro de Abreu

Considerações Românticas

 
O Romantismo prega a livre expressão das emoções humanas. Até a chegada deste movimento, toda a arte era produzida pela elite e para a elite. Após a Revolução Francesa, a burguesia sobe ao poder, então era preciso uma nova forma de expressão artística na qual os burgueses pudessem se identificar, e só eles poderiam fazê-la, pois eram os mais interessados.
Victor Hugo diz: "Vamos tirar o reboco das produções artísticas e abolir as normas da obra clássica. Subjetivismo antes de qualquer coisa".
A burguesia era vista pelos artistas da época como alguém que tinha dinheiro, mas carecia de educação e  cultura. Este sentimento de deslocamento social, faz com que muitos Românticos fujam do presente, idealizando o passado, ou um futuro utópico. Isto justifica-se porque os valores que os burgueses defendem, diferem muito daqueles nos quais a sociedade se organiza, por issso a fuga da realidade.
Com a industrialização e consequente ascensão da burguesia, surge um novo público, que intensifica o sentimento de nacionalidade e o gosto por tradições locais, pela poesia popular, pela história e literatura da Idade Média.


domingo, 20 de março de 2011

Como surgiu o Romance?



Todos nós, leitores frequentes ou não, temos uma ideia do que seja um romance, pois em um determinado momento lemos uma história em prosa. Esta, por sua vez, pode ter sido recheada de aventura, mistério, paixões e até mesmo ódio, tendo talvez um final inesperado para nós que torcíamos tanto para a felicidade dos personagens.
Mas onde surgiram esses ideais e preceitos, e principalmente, esta palavra?

Etimologicamente, a palavra romance deriva da expressão latina romanice loqui, “falar românico”, ou seja, falar num dos vários dialetos europeus que se formaram a partir da antiga Roma, em oposição a latine loqui, que era a língua culta da Idade Média. Nesses dialetos populares se contavam histórias de amor e de aventuras cavaleirescas, transmitidas oralmente; a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental. Esta forma cultural viveu à margem da literatura oficial classicista.
No mundo greco-romano, paralelo aos gêneros clássicos, havia outras formas de transmissão de cultura que circulavam entre o povo analfabeto. Uma delas, a ficção em prosa, tinha duas vertentes. A narrativa idealizante, composta de longas histórias de amor e de aventuras, centradas sobre um casal que após superar os obstáculos com a ajuda divina, realizavam o sonho de amor.
Outra vertente, a narrativa satirizante, se difundiu mais no mundo latino: de cunho fortemente realístico, apresentava quadros da vida cotidiana nos quais estava as  mazelas das classes sociais.
Entretanto, este gênero literário viveu ofuscado por muito tempo. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo o papel deixado pela epopeia de expressar a totalidade da vida, adquiriu estatuto de gênero literário. 
O romance tornou-se a forma literária que melhor exprimia os anseios da classe burguesa, que estava nascendo devido às revoluções Comercial e Industrial. A literatura tornou-se popular, destinada à classe média, metaforizada em um homem comum que enfrenta a dura realidade cotidiana.
E assim nasceu esta forma artística, considerada a narrativa mais difundida no meio literário. 

sábado, 19 de março de 2011

Brinquedos Incendiados

         
    Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns  pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.
      Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celulóide, modestos cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... –  pois  aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.
       Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só  renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.
       Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.                       
        O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.
        Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? , pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
       E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!     

Cecília Meireles
In Escolha o seu sonho.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Bom Crioulo


Imaginem vocês uma história que mostre em pleno século XIX , um romance homossexual entre um grumete louro e olhos azuis, e um negro. Na ficção isto ocorreu, sob as pinceladas de Adolfo Caminha, fundador do homoerotismo em nossa literatura.

O Bom Crioulo é o primeiro romance  homossexual da literatura brasileira, e também o pioneiro em mostrar o sexo inter-racial em plena marinha, temas tabus para a época (1895).
Amaro é um escravo foragido que anseia ser dono de seu próprio destino. É aceito como marinheiro, o que lhe permite realizar o seu sonho de liberdade e que, associado ao seu físico, "sem um osso à vista", claramente mais possante que o dos outros marujos, o transforma em alguém voluntarioso e benevolente, de tal forma que recebe a alcunha "Bom Crioulo".
Este conhece Aleixo, um belo grumete adolescente louro, de olhos azuis, por quem se apaixona. Amaro deixa de ser o marinheiro submisso. Envolve-se em brigas para defender o seu amado, embebeda-se, é castigado. Mas o que obtém em troca é mais gratidão que amor.
No Rio de Janeiro, Amaro arranja um quarto para si e para Aleixo na pensão de uma portuguesa, D. Carolina, antiga prostituta que aquele havia salvado de uma tentativa de assalto. 
A vida com Aleixo é quase marital, e o Bom Crioulo, enfrentando alguma impaciência do rapaz, deleita-se mais em apreciar longamente o seu lindo corpo alvo do que com a obtenção do prazer sexual.
Mas esta vida quase matrimonial é efêmera, pois o capitão do navio para onde Amaro é transferido mostra-se extremamente rígido, dando-lhe folga apenas uma vez por mês, o que dificulta o encontro dos amantes, que deixam de se ver. Para piorar, D. Carolina decide seduzir o adolescente; este se apaixona por ela.
Amaro abandona-se à aguardente, desequilibrado, arranja confusão e é repetidamente castigado. Transferido para um hospital-prisão, mergulha no tédio da recuperação e do abandono. Solitário e frustrado, Amaro fica inquieto ao saber que Aleixo o teria traído com uma mulher. Foge da prisão e, já perto da pensão, encontra Aleixo e mata-o tragicamente à navalhada no meio de uma multidão quase indiferente.


*Atores Marco Fuga (bom crioulo) e Pedro Cabizuca na encenação da peça que leva o nome da obra de Adolfo Caminha.

Amizade



Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! A alguns deles não procuro, basta saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida...mas é delicioso que eu saiba e sinta que eu os adoro, embora não declare e os procure sempre...

Vinícius de Moraes

segunda-feira, 7 de março de 2011

Macacos


 Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano-Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara — e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desfaria do gorila: "E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? e se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer Iá embaixo?" Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos de morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano-Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.
Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: "Quem receber esta, que a passe a outro", e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.
Quase cabia na mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.
Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arredondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.
No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. "Um pouco suave demais", pensei com saudade do meu gorila. E de repente foi meu coração respondendo com muita dureza: "Mas isso não é doçura. Isto é morte". A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois eu disse aos meninos: "Lisette está morrendo". Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi. — Lisette pensa que está passeando, mamãe — outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.
E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal agüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: "Lisette, meu bem, sossega!"
O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. "Não se compra macaco na rua", censurou-me ele abanando a cabeça, "às vezes já vem doente". Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: "O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua". Mas ele pensava. "Lisette é bonita!", implorei eu. "É linda", concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: "Se eu curar Lisette, ela é sua". Fomos embora, de guardanapo vazio.
No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: "Você acha que ela morreu de brincos?" Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: "Você parece tanto com Lisette!" "Eu também gosto de você", respondi.
                                                                                                                                       
                  Clarice Lispector.

In Felicidade Clandestina

Música com história!

Eu já disse isto, adoro ouvir música, mas de todas as músicas que eu ouço e que tive a oportunidade de ouvir no decorrer de minha vida, nenhuma me tocou mais profundamente quanto esta do Roupa Nova.
A primeira vez que a ouvi foi quando a mesma era tema de abertura de AViagem, que aliás continua sendo minha novela favorita, mesmo depois de dezessete anos da exibição original no horário das sete. A coisa é tão louca e profunda, que até do anunciante da novela eu consigo me lembrar. A melodia, a letra, o grupo, tudo nesta música me agrada. Infelizmente, hoje, poucos cantores conseguem, a meu ver, transmitir tanta emoção e nos passar uma mensagem tão bonita sobre a ideia da morte.

 

sábado, 5 de março de 2011

Para as mulheres

                                                               
Como esta semana é dedicada às mulheres, fiquei pensando em uma forma de homenageá-las, sem esquecer a vertente literária do blog. Aí me lembrei do romance Senhora, de José de Alencar. Por quê?

Senhora é um romance publicado em 1875, e narra a história de Aurélia Camargo. Esta namora Fernando Seixas, que desfaz o namoro para casar-se com uma moça rica, Adelaide.
Tempos depois, Aurélia recebe uma herança do avô e fica rica. Querendo se vingar de Fernando e sabendo que este está à disposição no mercado, em dificuldades financeiras, resolve comprá-lo para marido. Fernando suporta os remoques de Aurélia até juntar o dinheiro para comprar de volta a liberdade. Como Aurélia ainda é apaixonada por ele, dá-lhe a chave da alcova e o casamento se consome.

Senhora é um romance urbano que discute o valor do dote, sendo também uma crítica de costumes da época, na qual a mulher romântica é aquela sonhadora, idealizada ao extremo, que sonha com um casamento por amor.
José de Alencar, autor do romance e principal nome do Romantismo brasileiro, inverte este papel em alguns aspectos. Coloca Aurélia como dona de sua própria vida e precursora do próprio destino. Esta personagem é forte, determinada, possui habilidades nos negócios, e coloca os interesses de vingança à frente do sentimento amoroso que sente por Fernando Seixas.
Mas, para justificar a escola literária vigente, o amor triunfa sobre o dinheiro, e esta é a mensagem do romance: O amor é mais forte que a ambição.

O romance em questão foi adaptado para a televisão em 2005, na tv Record, através da novela Essas Mulheres, em uma junção de mais dois romances alencarianos, Lucíola e Diva, com Cristine Fernandes, Carla Regina e Mírian Freellan, nos papeis de Aurélia, Lúcia e Emília, respectivamente. 

Portanto, mulheres que me lêem, desejo que vcs sejam fortes, determinadas, a frente de seu tempo, inovadoras, e, principalmente, busquem independência e amor, tal qual nossa querida Aurélia Camargo.

Super abraço e parabéns pelas conquistas!

quinta-feira, 3 de março de 2011


"As pessoas que se comprazem no sofrimento, que gostam de sentir-se infelizes e fazer aos outros infelizes, jamais poderão orgulhar-se de sua beleza. O mau humor, o sentimento de frustração, a amargura marcam a fisionomia, apagam o brilho dos olhos, cavam sulcos na face mais jovem, enfeiam qualquer rosto. Essa é a razão porque a mulher, que cultiva a beleza, deve esforçar-se para ser feliz. Felicidade é estado de alma, é atmosfera, não depende de fatos ou circunstâncias externas.”

                                                                                          Clarice Lispector
                                                                                                                  

quarta-feira, 2 de março de 2011

Heróis?

Recebi este texto de um amigo, Weliton... Atualíssimo, mostra o quanto a nossa televisão perdeu em qualidade e na transmissão de cultura. 
Boa leitura!




    BIG BROTHER BRASIL  
(Luiz Fernando Veríssimo)

Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço...A décima primeira (está indo longe!) edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. Chega a ser difícil,... encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência.
Dizem que em Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB é a pura e suprema banalização do sexo. Impossível assistir, ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, héteros... todos, na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterossexuais. O BBB é a realidade em busca do IBOPE...
Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB. Ele prometeu um “zoológico humano divertido” . Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas.
Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo.
Eu gostaria de perguntar, se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade.
Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. Caminho árduo? Heróis?
São esses nossos exemplos de heróis?
Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros: profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores), carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor, quase sempre mal remunerados..
Heróis, são milhares de brasileiros que sequer têm um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir e conseguem sobreviver a isso, todo santo dia.
Heróis, são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna.
Heróis, são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada, meses atrás pela própria Rede Globo.
O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral.
E aí vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a "entender o comportamento humano". Ah, tenha dó!!!
Veja o que está por de tra$$$$$$$$ do BBB: José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão.
Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social: moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros?
(Poderiam ser feitas mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores!)
Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores.
Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa..., ir ao cinema..., estudar... , ouvir boa música..., cuidar das flores e jardins... , telefonar para um amigo... , visitar os avós... , pescar..., brincar com as crianças... , namorar... ou simplesmente dormir.Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída nossa sociedade.

O MAIOR HÉROI DE TODOS OS TEMPOS FOI E SERÁ JESUS CRISTO. SENDO JUSTO, MORREU NA CRUZ POR NOSSOS PECADOS...

*HÉROI É UM TRABALHADOR CONSEGUIR SOBREVIVER COM UM SALÁRIO MÍNIMO...

* HÉROIS SÃO NOSSOS POLÍTICOS, QUE MESMO O POVO CRITICANDO SUAS LEIS E AÇÕES, CONTINUAM COM A MESMA CARA... DE PAU...

Ah! Quem assiste ao BBB também vota.

terça-feira, 1 de março de 2011

Pão é Amor entre Estranhos

Amo os textos de Clarice Lispector porque me falam à alma. Mas nem sempre foi assim. Ainda no 1° ano de faculdade iniciei a leitura de Laços de Família, e não entendi nada, abandonei a obra ao relento. Foi então que tive um professor chamado Ronaldo que me fez a revelação clariceana que eu buscava para tentar entendê-la, no conto "Amor" .De vez em quando, costumo dizer que tenho epifanias, que para os leigos digo, é uma grande revelação tida pelos personagens clariceanos, geralmente advinda de um fato simples e inesperado, de um cotidiano monótono e vazio. Agora, a crônica  A Repartição dos Pães...

 Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.
Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.
Pão é amor entre estranhos.

 
    Clarice Lispector, in Laços de família

Uma pergunta: Qual o intertexto bíblico que percebemos entre a imagem e o texto?

Eu fico com a pureza das crianças

  O sino de ouro

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica perto do rio de Ouro e da serra de Santa Luzia, ao sul da Serra Azul - mas também pode ser Uruaçu, junto do rio das almas e da serra do Passa Três (minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos, esqueço os mandamentos e as cartas e até a amada que amei com paixão) -, mas me contaram que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres e os homens pobres, e muitos são parados e doentes indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem - coisa bela e espantosa - um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grã-senhor - nem Chartres, nem colônia, nem S. Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.É apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus - gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações, e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas as explosões - eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria, ouve o som alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada homem, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.
Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição, e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrupção - dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
E se Deus não existe, não faz mal. O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: "eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro".
O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesmo a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista, ele só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança tem dentro seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.

Rubem Braga, de A Borboleta Amarela