Este é um espaço de divulgação, discussão e reflexão acerca dos mais variados e distintos textos, verbais ou não. Afinal, a literatura e a língua estão expressas sob diversas formas, que nos conduzem ao conhecimento, inclusive de nós mesmos. Bem vindo!

sábado, 10 de dezembro de 2011


"Fizeram a gente acreditar que amor mesmo, amor pra valer,só acontece uma vez, geralmente antes dos 30 anos. Não contaram pra nós que amor não é acionado, nem chega com hora marcada.
Fizeram a gente acreditar que cada um de nós é a metade de uma laranja, e que a vida só ganha sentido quando encontramos a outra metade. Não contaram que já nascemos inteiros, que ninguém em nossa vida merece carregar nas costas a responsabilidade de completar o que nos falta: a gente cresce através da gente mesmo. Se estivermos em boa companhia, é só mais agradável. Fizeram a gente acreditar numa fórmula chamada "dois em um": duas pessoas pensando igual, agindo igual, que era isso que funcionava. Não nos contaram que isso tem nome: anulação.
Que só sendo indivíduos com personalidade própria é que poderemos ter uma relação saudável.
Fizeram a gente acreditar que casamento é obrigatório e que desejos fora de hora devem ser reprimidos.
Fizeram a gente acreditar que os bonitos e magros são mais amados, que os que transam pouco são caretas, que os que transam muito não são confiáveis, e que sempre haverá um chinelo velho para um pé torto. Só não disseram que existe muito mais cabeça torta do que pé torto. Fizeram a gente acreditar que só há uma fórmula de ser feliz, a mesma para todos, e os que escapam dela estão condenados à marginalidade. Não nos contaram que estas fórmulas dão errado, frustram as pessoas, são alienantes, e que podemos tentar outras alternativas.
Ah, também não contaram que ninguém vai contar isso tudo pra gente. Cada um vai ter que descobrir sozinho. E aí, quando você estiver muito apaixonado por você mesmo, vai poder ser muito feliz e se apaixonar por alguém"

John Lennon

Oração do Milho

 
Oração do Milho

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres.
Meu gão, perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada. Ponho folhas e haste e se me ajudares Senhor, mesmo planta de acaso, solitária, dou espigas e devolvo em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. E de mim, não se faz o pão alvo, universal.
O Justo não me consagrou Pão da Vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre. Alimento de rústicos e animais do jugo.
Fui o angú pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante. Sou a farinha econômica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paiois.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
Sou o carcarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal, agradecida a Vós, Senhor, que me fizeste necessária e humilde
SOU O MILHO

Cora Coralina

Receita de Ano Novo

O blog está de visual novo e espero que gostem. E, será que ainda tenho leitores? Após alguns meses, nunca mais postei  e talvez tenham me esquecido. Mas é que minha vida mudou tanto nos últimos meses, graças  a Deus, que não tive mais como me expor neste blog. Sinto que falta-me inspiração para escrever, mas hoje gostaria de falar sobre o Carlos Drummond de Andrade.


RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo

cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa

fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo

que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 9 de setembro de 2011


Sobre a Escrita...

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com ela como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.  Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.  Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse  ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.

Clarice Lispector

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O Desaparecido


Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.

Rubem Braga

De "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 112.
 "(...) farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como uma responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz..."
Clarice Lispector

terça-feira, 26 de julho de 2011

Auto-conhecimento...

Sempre acreditei ser auto-suficiente. Achava que o meu eu bastava para que a vida ocorresse em toda a sua plenitude. Cheguei ao ponto de aconselhar amigos a serem felizes sozinhos e construírem suas vidas por si mesmos.Sentia-me não com soberba, mas tranquilo em minha vida pacata. 
No entanto, quando passei a viver algumas emoções, aspectos muito particulares de minha vida fugiram de meu controle. Hoje, encontro-me à espera do preenchimento de um vazio que eu nem sabia que existia em mim. Sei que isso se chama Saudade...  
 

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
 
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca

terça-feira, 19 de julho de 2011

Conto de Natal

Quando a tristeza insiste em nos visitar, e principalmente, permanecer em nossas vidas, o refúgio à dor pode ser a leitura de um texto cujo o sofrimento é maior que o nosso. Afinal, acredito não haver dor tão cruel que a perca de quem a gente mais ama...

 
Conto de Natal

Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada, andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
— Porcaria...
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí...
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui...
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca, o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
— Péra aí...
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de "seu" Anacleto.
— Não...
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher...
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus...
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito...
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte, de manhã, o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê...
— Uai! Péra aí...
O menino Jesus Cristo estava morto.

Rubem Braga 

Texto extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza - Rio de Janeiro, 1964, pág. 39.
 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

"O que mata um jardim não é o abandono. O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem por ele passa indiferente".

Mário Quintana

Tudo o que hoje preciso realmente saber, sobre como viver, o que fazer e como ser, eu aprendi no jardim de infância. A sabedoria não se encontrava no topo de um curso de pós-graduação, mas no montinho de areia da escola de todo dia.

Estas são as coisas que aprendi:

1. Compartilhe tudo;
2. Jogue dentro das regras;
3. Não bata nos outros;
4. Coloque as coisas de volta onde pegou;
5. Arrume sua bagunça;
6. Não pegue as coisas dos outros;
7. Peça desculpas quando machucar alguém; mas peça mesmo !!!
8. Lave as mãos antes de comer, e agradeça a Deus antes de deitar;
9. Dê descarga; (esse é importante)
10. Biscoitos quentinhos e leite fazem bem para você;
11. Respeite o limite dos outros;
12. Leve uma vida equilibrada: aprenda um pouco, pense um pouco... desenhe... pinte... cante... dance... brinque... trabalhe um pouco todos os dias;
13. Tire uma soneca a tarde; (isso é muito bom)
14. Quando sair, cuidado com os carros;
15. Dê a mão e fique junto;
16. Repare nas maravilhas da vida;
17. O peixinho dourado, o hamster, o camundongo branco e até mesmo a sementinha no copinho plástico, todos morrem... nós também.

Pegue qualquer um desses itens, coloque-os em termos mais adultos e sofisticados e aplique-os à sua vida familiar, ao seu trabalho, ao seu governo, ao seu mundo e vai ver como ele é verdadeiro, claro e firme. Pense como o mundo seria melhor se todos nós, no mundo todo, tivéssemos biscoitos e leite todos os dias por volta das três da tarde, e pudéssemos nos deitar com um cobertorzinho para uma soneca. Ou se todos os governos tivessem como regra básica, devolver as coisas ao lugar em que elas se encontravam e arrumassem a bagunça ao sair. 
Ao sair para o mundo é sempre melhor darmos as mãos e ficarmos juntos. É necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas estão dentro de nós, onde os sentimentos não precisam de motivos nem os desejos de razão.   
"O importante é aproveitar o momento e aprender sua duração, pois a vida está nos olhos de quem souber ver"...  

Pedro Bial

domingo, 3 de julho de 2011

Há momentos em que me espanto com algumas coincidências. Sou uma pessoa muito insatisfeita e por isso, insaciável. Busco cada vez mais algumas coisas que sei que o mundo talvez não seja capaz de me dar com toda a plenitude de que necessito. 
Encontrei este excerto, que dizem ser de Clarice Lispector, na internet e por agora ele traduz muito daquilo que penso ser. Não sou de muitos amigos, mas continuo amando as pessoas, e não me importando se elas vão me retribuir.  Não tenho ninguém que me ame, mas sei que algumas pessoas muito importantes me amam, e isso me basta. Parafraseando Paulo Freire, eu amo as pessoas e amo o mundo. Nasci para as pessoas e para o trabalho, não para satisfazer as minhas vontades.

 
“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].” 

Clarice Lispector

Felicidade?

Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.

Mário Quintana

A Morte Devagar

Morre lentamente quem não troca de idéias, não troca de discurso, evita as próprias contradições.
Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.
Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população.
Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar.

Martha Medeiros

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Rosa de Hiroshima

Acho esta canção linda. Foi composta pelo  nosso Camões brasileiro, Vinícius de Moares, e musicada por Ney Matogrosso. É claro que a mensagem é signicativa, mas o Ney consegue dar o tom que o texto pede para alcançar o seu nível reflexivo, através da melodia utilizada.
Este contexto histórico de guerra e conflitos, vai influir diretamente na formação da segunda geração modernista no Brasil, no qual os poetas, como Carlos Drummond de Andrade, vão falar sobre a necessidade de se exaltar o amor, em detrimento do cenário de tristeza advindo da ditadura militar de Getúlio Vargas, no Brasil, e principalmente, da ascensão da Segunda Guerra Mundial, quando Alemanha invade a Polônia, em 1939.  

Fábula eleitoral para crianças

"Um dia, meninos, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os três reinos entraram logo a confabular. Animais, vegetais e minerais começaram a viver uma vida agitada de surtos eloqüentes, manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas, palpites, conversinhas ao pé do ouvido.
Entre os bichos era um tumulto formidável. Bandos de periquitos saíam em caravana eleitoral, matilhas de cães discursavam dentro da noite, cáfilas de camelos percorriam os desertos, formigas realizavam comícios fantásticos, a rainha das abelhas passava com o seu séquito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatéias pelos montes, nas manadas de búfalos pelas savanas, nas revoadas instantâneas dos pombos-correios.
Todas as qualidades eram postas à prova: a astúcia da raposa, a agilidade dos felinos, o engenho dos cupins, o siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doçura da pomba, a teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos...
O leão, o tigre, a pantera, o leopardo e outros queriam derramar muito sangue; os pássaros coloridos faziam frente única para indicar um pássaro colorido; já os pássaros que cantam decidiam apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa: as cegonhas, irresolutas, passavam as tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no céu; as andorinhas, tímidas, buscavam o refúgio das igrejas; e a águia, fascista de nascença, pretendia organizar lá no alto uma conferência de que só participassem as aves de rapina, como o falcão, o condor e o gavião-de-penacho.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas árvores; a raposa corria as várzeas articulando uma candidatura, ninguém sabia qual; os macacos eram vaiados quando alegavam a semelhança com o homem; o cavalo se insinuou candidato, dando a sua condição de antigo senador; o pavão, escondendo os pés, exibia a cauda; nos brejos, os sapos repetiam slogans monótonos; os jacarés e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam levando sussuros quase imperceptíveis, a conversar as pedras e as ervas das margens; o rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com o rato da cidade; os gansos citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a íbis, invocavam direitos divinos, que não eram mais levados a sério; as hienas e os chacais opinavam por um conselho de notáveis, a ser constituído pelos animais ferozes, que lhes deixavam os restos; até a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.
A mosca azul voava e revoava por todos os cantos. Quem será o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas andavam como doidas pelos campos, à noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.
Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinações com o hidrogênio. O diamante e o ouro reluziam de esperança. As estrelas pretendiam uma coalizão de todo o espaço constelado em torno de Vênus, causando ciúmes à Lua.
As flores distribuíam perfumes. Árvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam de longe. A floresta pensava eleger não um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos, cheios de experiência. E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um florescer. Os monocotiledôneos discordavam dos dicotiledôneos, os fanerógamos acusavam de hipocrisia os criptógamos. A plena campanha eleitoral com todos os incidentes. Só os ciprestes continuavam fechados em sua indiferença.
A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradições, é preciso dizer, a bem da verdade, que o pleito transcorreu com a máxima lisura.
Ao fim de tudo, a escolha não podia ter sido mais feliz, pois os três reinos unidos elegeram a rosa rainha suprema do universo.
Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o céu e a terra, eterna e efêmera, a rosa, carne, espírito e pó. 
E, para entronizar a rainha, o dia se iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os pássaros cantaram com inspiração, as árvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens de gala, os seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram com reverência, as nuvens se desfraldaram como cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do mar era uma alegria silenciosa e solene como um Te Deum em uma catedral verde-escuro, os polvos gesticulando em câmara-lenta, os peixes e as medusas passando sem barulho.
Entre os seres humanos, só as crianças sabiam que era o dia da entronização da rosa, e nada contaram a ninguém. Nem o poeta se lembrava de que a rosa era a rainha, a rosa que se achava expectante no seu recato soberano, quando passou pelo jardim um homem feio e preocupado. Era um candidato a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a prefeito, a presidente, não se sabe ao certo. Distraído nas suas ambições, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a fenecer em dedos úmidos. Depois, ele olhou e viu que se tratava de uma rosa, uma rosa a morrer. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... 
O homem começou a desfolhar a rosa só para saber se dessa vez seria eleito. E a rosa morreu. 
Foi por isso que o dia se fechou de repente, os animais uivaram nos bosques, as aves sumiram, o vento se desatou sobre o mar enraivecido, o raio e o trovão tomaram conta da noite sem estrelas,. Entre os humanos, só as crianças na hora do jantar perderam a fome. Estava morta a rainha do universo.
Mas nas trevas, insistente, nasceu de novo a rosa e iluminou o paraíso perdido."

Paulo Mendes Campos

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Onde estou? Este sítio desconheço

Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço

De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes,

Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:

Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera! 

Cláudio Manuel da Costa

domingo, 26 de junho de 2011

Desejo...

Satânico é meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma, e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença,aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos.
Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci.
Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão.
Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite.
Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama, te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do seu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti, pernilongo Filho da Puta!!!!

Carlos Drummond de Andrade 

Desencontros

 Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

São os desencontros da vida... Às vezes nos deixam tristes por não termos a pessoa de quem mais gostamos ao nosso lado, outrora, nos surpreende com um amor totalmente inesperado. Por isso, temos o direito de ficarmos tristes em alguns momentos, mas há também o dever de não nos comprazermos no sofrimento.  
Enquanto estivermos vivos, vamos à luta...

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Tendências Comportamentais na Literatura

O Cortiço foi o melhor livro que li em toda a minha vida. A referida obra marcou-me de tal forma, que fiz monografia sobre ele, e mudei completamente o meu ramo de pesquisa, que até então era a Línguística e o Português.  Há, uma curiosidade que nunca revelei a ninguém e vou contar agora. 
O que mais impressionou-me nesta obra naturalista, foi a visão sexual mostrada pela mesma. Tanto nos casais heterossexuais: a tríade Jerônimo, Rita Baiana e Piedade, Bertoleza e João Romão; como também na relação homossexual entre Léonie e Pombinha. 
Acredito que essa visão promíscua da vida sempre me fascinou, as taras, a ambição, esse desejo de enriquecer, a podridão. Mas o que me atrai não é bem estes fatos, mas a investigação de suas origens, suas raízes e causas. Busco nos filmes assistidos por mim na atualidade, principalmente os referentes às favelas e à criminalidade, as relações existentes entre o ontem e o hoje no que concerne à origem da miséria. Isso é o real, aquilo que muitos tentam esconder por meio de idealizações e fantasias que nos fazem ou ainda nos farão sofrer se não encararmos o mundo de frente. Esta tese foi o mote para o surgimento do Realismo, na França, com Madame Bovary, de Flaubert, e posteriormente, o Naturalismo com Émile Zola, ambos no século XIX.   
Vejamos algumas diferenciações básicas entre Realismo e Naturalismo. Lembrando que estes são trechos do meu TCC, portanto, quem copiar, por gentileza coloque os créditos.
Realista é um termo derivante de real, oriundo do adjetivo do baixo latim realis, reali, derivante de res, cujo significado é coisa, fato. Assim, Real+ ismo é uma palavra “indicadora da preferência pelos fatos e a tendência a encarar os fatos tais como na realidade são”. Ressaltando que “ismo” é um sufixo denotativo de partido, seita, crença, gênero ou escola.
Portanto, o Realismo é a escola literária do século XIX na qual se dará ênfase à realidade, mostrando os seus aspectos sórdidos, que até então eram camuflados pela subjetividade do período anterior.
A referida palavra abarca para a literatura em 1857, pelas mãos de Champfleury ao publicar ensaios a partir de 1843, expondo nestes a doutrina realista. Porém, a publicação de Madame Bovary de Flaubert, em 1857, faz o Realismo triunfar na França.
O Naturalismo caracteriza-se como uma tendência dentro da literatura realista, pois busca-se retratar uma verdade que necessita ser provada por meio dos estudos científicos e filosóficos, atendendo a uma demanda do contexto vigente da época, na qual figuravam as descobertas científicas, no intuito de analisar e provar os desígnios comportamentais do homem sob os influxos biológico, psicológico ou do meio.
Por isso, os romances naturalistas são "de tese", pois os comportamentos descritos precisam ser comprovados pelo estudo de análise científica. O Realismo, entretanto, coloca em pauta comportamentos comprovados, como o adultério e as relações movidas pelo interesse. O curioso é que isto estava em pauta há duzentos anos, e algumas coisas não se modificaram. Ainda há certos comportamentos denunciados naquela época, que prevalecem hoje. Assim, podemos afirmar que a literatura da época cumpriu o seu papel, de denúncia do incorreto para tentar melhorá-lo. Mas, algumas pessoas não cumpriram o delas. A realidade continua sendo muito triste...

Esteriótipos...

Queria postar um texto sobre um homem selvagem, aquele que deixa qualquer mulher enlouquecida pelo desejo de tê-lo, ao menos por um dia. 
Entretanto, descobri esta crônica do Arnaldo Jabor sobre a coisificação da mulher midiática, aquela tida como gostosa pelos marmanjos, e que consegue a proeza de despertar nos homens o instinto sexual que estes julgam ter pelo desconhecido. A crítica do texto, como vocês verão, reside exatamente aí: Elas conseguiriam no máximo, ser a amante, e mesmo assim, tenho dúvidas, pois o homem de verdade, aquele que as quer para cúmplice, mulher, mãe... protetora e defensora da família que deseja construir, com o tempo, certamente enjoará desta postura vertical e única destas mulheres fabricadas, de só servir na cama. Pois o relacionamento exige mais do que sexo.  
Espero que gostem...   

Mulheres
Outro dia, a Adriane Galisteu deu uma entrevista dizendo que os homens não querem namorar as mulheres que são símbolos sexuais. É isto mesmo.
Quem ousa namorar a Feiticeira ou a Tiazinha?
As mulheres não são mais para amar; nem para casar. São para 'ver'.
Que nos prometem elas, com suas formas perfeitas por anabolizantes e silicones?
Prometem-nos um prazer impossível, um orgasmo metafísico, para o qual os homens não estão preparados...
As mulheres dançam frenéticas na TV, com bundas cada vez mais malhadas, com seios imensos, girando em cima de garrafas, enquanto os pênis-espectadores se sentem apavorados e murchos diante de tanta gostosura.
Os machos estão com medo das 'mulheres-liquidificador'.
O modelo da mulher de hoje, que nossas filhas ou irmãs almejam ser (meu Deus!), é a prostituta transcendental, a mulher-robô, a 'Valentina', a 'Barbarela', a máquina-de-prazer sem alma, turbinas de amor com um hiperatômico tesão.
Que parceiros estão sendo criados para estas pós-mulheres? Não os há.
Os 'malhados', os 'turbinados' geralmente são bofes-gay, filhos do mesmo narcisismo de mercado que as criou.
Ou, então, reprodutores como o Zafir, para o Robô-Xuxa.
A atual 'revolução da vulgaridade', regada a pagode, parece 'libertar' as mulheres.
Ilusão à toa.
A 'libertação da mulher' numa sociedade escravista como a nossa deu nisso: Superobjetos. Se achando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor, carinho e dinheiro.
São escravas aparentemente alforriadas numa grande senzala sem grades.
Mas, diante delas, o homem normal tem medo.
Elas são 'areia demais para qualquer caminhãozinho'.
Por outro lado, o sistema que as criou enfraquece os homens.
Eles vivem nervosos e fragilizados com seus pintinhos trêmulos, decadentes, a meia-bomba, ejaculando precocemente, puxando sacos, lambendo botas, engolindo sapos, sem o antigo charme 'jamesbondiano' dos anos 60.
Não há mais o grande 'conquistador'.
Temos apenas os 'fazendeiros de bundas' como o Huck, enquanto a maioria virou uma multidão de voyeur, babando por deusas impossíveis.
Ah, que saudades dos tempos das bundinhas e peitinhos 'normais' e 'disponíveis'...
Pois bem, com certeza a televisão tem criado 'sonhos de consumo' descritos tão bem pela língua ferrenha do Jabor (eu).
Mas ainda existem mulheres de verdade.
Mulheres que sabem se valorizar e valorizar o que tem 'dentro de casa', o seu trabalho.
E, acima de tudo, mulheres com quem se possa discutir um gosto pela música, pela cultura, pela família, sem medo de parecer um 'chato' ou um 'cara metido a intelectual'.
Mulheres que sabem valorizar uma simples atitude, rara nos homens de hoje, como abrir a porta do carro para elas.
Mulheres que adoram receber cartas, bilhetinhos (ou e-mails) românticos!!
Escutar no som do carro, aquela fitinha velha dos Beegees ou um cd do Kenny G (parece meio breguinha)...mas é tão boooom namorar escutando estas musiquinhas tranquilas!!!
Penso que hoje, num encontro de um 'Turbinado' com uma 'Saradona' o papo deve ser do tipo:
-'meu'... o meu professor falou que posso disputar o Iron Man que vou ganhar fácil!.'
-'Ah 'meu'..o meu personal Trainner disse que estou com os glúteos bem em forma e que nunca vou precisar de plástica'. E a música???
Só se for o 'último sucesso (????)' dos Travessos ou 'Chama-chuva...' e o 'Vai serginho'???...
Mulheres do meu Brasil Varonil!!! Não deixem que criem estereótipos!!
Não comprem o cinto de modelar da Feiticeira. A mulher brasileira é linda por natureza!!
Curta seu corpo de acordo com sua idade, silicone é coisa de americana que não possui a felicidade de ter um corpo esculpido por Deus e bonito por natureza. E se os seus namorados e maridos pedirem para vocês 'malharem' e ficarem iguais à Feiticeira, fiquem... igual a feiticeira dos seriados de Tv: - Façam-os sumirem da sua vida!!!

Arnaldo Jabor

domingo, 19 de junho de 2011

Venha ver o pôr do Sol

Um dos contos mais lindos que conheci... 
 
 Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
-Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
-Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
-Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro.
-Hem?!- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? 
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério? Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura.- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
-Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério... Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
-E você acha que eu iria?
-Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento 
–Você fez bem em vir.- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.- Mas eu pago.- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. 
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
-Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. 
– Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão.- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
-É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
-Ele é tão rico assim?
-Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. 
- Chega Ricardo, quero ir embora.- Mais alguns passos...- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
-A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. – Enfim não tem importância. 
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o - Eu gostei de você, Ricardo.- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. 
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
-Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui? 
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
-Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? - Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo? 
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
-Todas estas gavetas estão cheias? - Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
-Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando... Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? 
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. 
- Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.- Não, não...Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.- Não...Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:-  NÃO! Durante algum tempo, ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
 
Lygia Fagundes Telles

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Bezerro sem mãe

Estou apaixonado pela simplicidade dos textos de Rachel de Queiróz. Ela não tem linguagem complexa, palavras eruditas, mas consegue captar os verdadeiros sentimentos provindos da simplicidade do sertão nordestino. O conto a seguir, marcado por um tom regionalista característico da escritora, nos fala sobre aquilo que Drummond já anunciara em seus poemas: "O amor foge aos regulamentos vários", e o que sobra no final, é apenas... amor, sem explicação que o sustente; apenas pelo simples fato de amar, não importando quem, etnia, religião ou gênero.
Observe também que a dor pode nos mover para a frente, mesmo quando imaginamos não haver saída para o nosso sofrimento.

                                                           
 Bezerro sem mãe
 
          Foi numa fazenda de gado, no tempo do ano em que as vacas dão cria. Cada vaca toda satisfeita com o seu bezerro. Mas dois deles andavam tristes de dar pena: uma vaca que tinha perdido o seu bezerro e um bezerro que ficou sem mãe.
       A vaquinha até parecia estar chorando, com os peitos cheios de leite, sem filho para mamar. E o bezerro sem mãe gemia, morrendo de fome e abandonado.
        Não adiantava juntar os dois, porque a vaca não aceitava. Ela sentia pelo cheiro que o bezerrinho órfão não era filho dela, e o empurrava para longe.
         Aí o vaqueiro se lembrou do couro do bezerro morto, que estava secado ao sol. Enrolou naquele couro o bezerrinho sem mãe e levou o bichinho disfarçado para junto da vaca sem filho.
         Ora, foi uma beleza! a vaca deu uma lambida no couro, sentiu o cheiro do filho e deixou que o outro mamasse à vontade. E por três dias foi aquela mascarada. Mas no quarto dia, a vaca, de repente, meteu o focinho no couro e puxou fora o disfarce. Lambeu o bezerrinho direto, como se dissesse: “Agora você já está adotado.”
          E ficaram os dois no maior amor, como filho e mãe de verdade.

Rachel de Queiróz